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Fabricio 5Assim é para Fabrício da Conceição Leite e sua "grande família"

"Eu chego em qualquer restaurante, que nem eu vou lá para o Ouro Verde, lá para o San Diego, para esses lugares, aí eu falo: 'eu estou sem dinheiro, estou catando reciclagem, tem como me ajudar com um pão?' Ele já traz uma marmita para mim. Aí eu já lembro aqui da grande família, eu vejo como está dentro de casa, eu como a metade e trago a metade pra dentro de casa. É assim que funciona".

Fabrício tem 30 anos, Cláudia, sua esposa, tem 21, e o filho ainda não tem dois anos. Eletricista, desempregado e com uma doença cardíaca, Fabrício veio da Bahia com a família há cerca de cinco meses. A sobrevivência vem da venda de recicláveis e de um cartão Nutrir Emergencial com que Cláudia recebe 98 reais por mês.

"Num dia eu ganho uns 40, 50, mas tem dia que eu não consigo nem 15 reais. Tem dia que eu tiro uns 60, aí eu consigo comprar um litro de óleo, um leite que ele pede", diz Fabrício, olhando para o filho. Moram em um único cômodo, no Jardim Santo Antonio, pagando 250 reais de aluguel por mês.

Antes pagavam 400 reais numa outra casa, mais uns 200 de água e uns 180 de luz. Mas era porque tinha o cunhado junto, trabalhando com ele na coleta de recicláveis. "Aí, como o irmão dela foi embora, eu fiquei sozinho catando reciclagem, aí eu vim pra cá, porque aqui é mais barato. Ainda estou devendo dinheiro para a mulher, eu saí de lá porque não conseguia pagar".

Agora, são 250 com água e luz. "Aqui a mulher foi gratificante comigo, era para pagar água e luz por fora, daí ela falou para pagar só os 250. Só que não pra ficar de regalia, gastando muita água, muita luz. Aí eu falei para ela que, quando eu arrumar um trabalho fixo, eu vou acertar com ela, porque eu sou do justo pelo justo".

E o auxílio emergencial? "Acho que um urubu cagou na cabeça", esclarece solenemente Fabrício. "Eu não peguei nenhum auxílio desse daí, nenhuma parcela. Eu fiz a inscrição, aí me deram pra ligar para o número 121, acho que é da Receita Federal". O 121 é do Ministério da Cidadania, para dar informações sobre os programas sociais do governo federal. Ele ligou, e...? Nada até agora.

Desigualdade
"Nossa mistura todo dia, sabe qual é? Retalho, que eu pago 60 centavos no quilo, aí só vem gordura", conta Fabrício, explicando que compra no supermercado do bairro. Sobre os "retalhos", Roseli de Brito, que mora na mesma rua e é integrante do Coletivo de Educação Popular Dona Maria, explica: "Eles [o supermercado] usam mais para a gente comprar pra dar aos animais, não é pra gente comer".

Retalhos 500 16 10"É até vergonha falar para vocês, é a mistura que nós compramos"

Inconformado com o fato de "um ser humano" ter que se humilhar por um prato de comida, ele argumenta: "se a senhora come um arroz, ele come um feijão, o rico, não come? Ele come uma carne, não come? E nós também não comemos? Então, porque tanta desigualdade? O direito é o mesmo, né? A desigualdade é demais no ser humano, o ser humano não está pensando mais no próximo, não, não está".

Não está. Segundo a pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, intitulada "Desigualdade de Impactos Trabalhistas na Pandemia", a desigualdade social aumentou, e muito, no Brasil durante a pandemia. "Na metade mais pobre da população, a perda de renda atingiu -21,5%, o que conforme o estudo configura o aumento da desigualdade entre a base e a totalidade da distribuição", diz a publicação da Agência Brasil agora em setembro. Já entre os 10% mais ricos da população, a queda de renda durante a pandemia foi de apenas 7,16%, ou seja, menos de 1/3 da queda de renda tida pela metade mais pobre.

E, com o aumento da inflação e do desemprego, a situação dos mais pobres fica ainda pior. "Nos 12 meses terminados em julho de 2021, a inflação dos pobres ficou em 10,05%, 3 pontos percentuais (p.p) maior que a inflação da alta renda, segundo estimativas do Ipea. Nos nossos cálculos, a taxa de desemprego da metade mais pobre subiu na pandemia de 26,55% para 35,98%. Já entre os 10% mais ricos a mesma foi de 2,6% para 2,87%", explica o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, na entrevista à Agência Brasil.

Assim, a desigualdade social no Brasil atingiu seu recorde histórico: "O índice de Gini, que mede a desigualdade e já havia aumentado de 0,6003 para 0,6279 entre os quartos trimestres de 2014 e 2019, saltou na pandemia atingindo 0,640 no segundo trimestre de 2021, ficando acima de toda série histórica pré pandemia", destaca Neri.

Insegurança alimentar e fome
De acordo com o "Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil", feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) e divulgado na semana passada (13/10), a insegurança alimentar atinge 55% da população brasileira.

"Os resultados do inquérito mostram que, nos três meses anteriores à coleta de dados, menos da metade dos domicílios brasileiros (44,8%) tinha seus(suas) moradores(as) em Segurança Alimentar. Dos demais, 55,2% que se encontravam em Insegurança Alimentar (IA); 9% conviviam com a fome", diz o relatório da pesquisa, que foi realizada no período de 05 a 24 de dezembro de 2020.

"Do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome", resume o relatório, que também destaca: "domicílios com rendimentos de até 1/4 do salário-mínimo per capita (SMPC) tinham IA grave: 2,5 vezes superior à média nacional dos domicílios".

Veja o relatório completo: Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil

Repartindo o que tem
"Um dia desses, um cara estava passando aqui, aí falou 'Fabrício, eu não tenho nada lá em casa'. Eu tinha acabado de ganhar uma cesta que o cara veio deixar aqui na porta da minha casa. Aí eu falei 'Não tem nada, não é? Então toma'. Fiz uma mini cesta básica e disse 'pode levar, que Deus me dá em dobro'. A gente dividiu. Ele mora aqui, nesses barraquinhos aqui. Eu preciso, preciso mesmo, mas o pouco que eu tenho, eu divido com meus irmãos".

É o que faz também o Coletivo de Educação Popular Dona Maria, no Jardim Santo Antonio. Lucimara de Jesus, coordenadora do Coletivo, conta que são muitas famílias em situação de extrema necessidade na região, e que, muitas vezes, surgem situações de emergência em que todos se mobilizam para ajudar, como foi o caso do Seu José:

"Foi outro dia que ele pediu socorro, ele mandou no grupo [de whatsapp], porque tem o grupo da nossa comunicação ali com o projeto [do Coletivo Dona Maria] e as pessoas que são atendidas. Aí ele falou 'gente, eu não tenho nada pra pôr na panela, estou passando uma situação muito difícil, queria saber se vocês têm alguma coisa aí pra ajudar'. Como ele já colocou no grupo, então a maioria das pessoas já viu. Daí, assim, as pessoas do próprio grupo se manifestam, 'ah eu vou doar isso, eu vou doar aquilo', e a gente também já entra em contato com outras pessoas aqui do próprio bairro e pergunta o que podem estar ajudando para levar rápido".

Lucimara diz que o pessoal responde depressa. "Claro tem o tempo de ir lá na casa de um buscar, outro levou no Dona Maria, eu também fiz uma 'captação' no meu armário e ajudei com algumas coisas, a Roseli também fez isso. Aí conseguimos também leite para a criança. Deu assim bastante coisa", relata. Mas ela diz que nem sempre o Coletivo consegue fazer isso. "Por quê? Fora de pagamento! Daí todo mundo também tem dificuldade".

Mesmo assim, no entanto, quando a necessidade é grande e imediata, Lucimara diz que dá para tirar um pouquinho daqui e dali e ajudar. "Teve uma moça que falou assim 'olha, eu tenho um restinho de arroz aqui, mas eu posso dividir com ele'. Assim, as pessoas pegam a metade do que elas têm e dividem. Essa coisa imediatista assim não tem como você falar 'ah, amanhã eu vou receber, eu compro e dou'. Não, não é, está precisando agora. Tem que ser rápido".

O que diz a Prefeitura
A Secretaria de Assistência Social, por meio de sua assessoria de imprensa, disse ao Informa Campinas que "não faltam programas e ações de promoção de segurança alimentar" na cidade de Campinas. "A Prefeitura mantém os cartões Nutrir Emergencial e o temporário, mantém a Campanha Campinas sem Fome, temos o Bolsa Família e temos a Casa da Cidadania, que serve refeições gratuitas".

A Secretaria citou também outros três programas: "o programa de cestas básicas que a Educação distribui para as famílias; a distribuição do Renda Cidadã, do governo do Estado; e a distribuição do Viva Leite". Além disso, segundo a Secretaria, agora existe o Programa Campinas Solidária e Sustentável, que visa proporcionar, via agricultura urbana e orgânica, alimentos e recursos a preço de custo à população socialmente vulnerável, proporcionando não só diversidade alimentar como também potencial de autonomia aos indivíduos".

Sobre os cartões "Nutrir", a Secretaria informou que "atualmente, o Cartão Nutrir temporário atende 5,5 mil famílias e o Cartão Nutrir Emergencial atende 22.733 famílias". Por fim, afirmou: "Certamente isso não resolve 100% dos problemas de insegurança alimentar, mas há políticas e há ações".

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