Projeto, que produz e distribui 300 refeições por dia, também visa preparar as comunidades para assumir esta e outras propostas de solidariedade, geração de renda e defesa do meio ambiente

Sao Marcos 13 23 10Cozinha não entrega refeições em embalagens descartáveis, cada pessoa tem que trazer suas vasilhas

Os moradores das comunidades do Vale do Sol, CDHU San Martin e Vila Paula começam a formar a fila por volta das 11h, para receber as refeições que são distribuídas a partir das 11h30. As refeições, porque cada pessoa leva o almoço e a janta, para si e para todos/as de sua casa.

"São em torno de 300 refeições por dia, por exemplo aquela que levou vários potes, levou para ela e para os netos, um pratinho para cada neto", conta a coordenadora da Cozinha Solidária do São Marcos, Maria Raimunda de Jesus Santos, completando que "anteontem foram 314", conforme anotou o "Seu Alegria" no caderno, para somar no final.

Raimunda faz parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e mora no Acampamento Marielle Vive, em Valinhos. A equipe que prepara a comida tem quatro pessoas, que saem de Valinhos às 6h30 e retornam só às 15h, após limparem tudo depois de servidas as refeições com a ajuda de membros da Associação Vale do Sol.

Sao Marcos 8 23 10Raimunda, coordenadora da Cozinha, mostra o arroz suficiente para as cerca de 300 refeições do dia

Além da comida, com arroz, feijão, verdura e uma proteína, "tem sempre também uma fruta, um dia banana, ou maçã, hoje é salada de frutas", diz a Cida (Maria Aparecida Alves dos Santos), que também é do Marielle Vive e faz parte da equipe da Cozinha.

Ela explica que as frutas são doação, assim como todos os outros ingredientes. "Aqui a gente não escolhe, o que chegar, seja bem-vindo, a gente não tem que escolher o que eles vão trazer, eles que oferecem para a gente, né?".

Para Raimunda, todo o esforço e dedicação vale a pena, porque é a salvação da vida de alguém: "significa vida, na verdade, eu vejo vida, porque eu sei que têm pessoas que morrem de fome por aí, ou às vezes comem muito mal, uma coisinha assim que, com o tempo, as pessoas vão ficando doentes".

A Cozinha Solidária São Marcos é um projeto desenvolvido por três instituições. A primeira é a Paróquia São Marcos, em cuja área de abrangência se localiza o projeto, por isso ele ganhou este nome, embora não esteja no bairro São Marcos.

Outro organizador do projeto é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por meio do Acampamento Marielle Vive. E o terceiro é o Núcleo da Economia de Clara e Francisco, que é da Arquidiocese de Campinas.

Para se viabilizar, o projeto tem também vários apoiadores. Entre eles estão os sindicatos, a CUT, o ISA, a ADUnicamp, o SindiQuinze, a Associação de Moradores Vale do Sol, algumas pessoas físicas também e o Fundo de Solidariedade da Arquidiocese de Campinas.

Mais do que distribuir comida
Padre Antonio Alves, pároco da Paróquia São Marcos, o Evangelista, explica que o objetivo mais imediato é dar uma comida de qualidade. Por isso é um projeto sem prazo para terminar. A ideia inicial era três meses, mas já funciona há quatro meses.

"Não é só distribuir comida, é distribuir uma comida de qualidade, na medida do possível orgânica", diz padre Antonio, destacando que isso "ainda não é possível 100%", porque a pandemia afetou todos os setores, depois veio a crise hídrica, que está atrapalhando pequenos agricultores a contribuírem com a cozinha.

Sao Marcos 3 23 10Pe. Antonio cumprimenta a equipe da Cozinha antes de começar a distribuição de refeições

Essa produção e entrega de "comida de qualidade" está ligada a dois outros objetivos: a horta comunitária e agroecológica e a preservação do meio ambiente. Pe. Antonio conta que são apresentados três modelos de horta: "para motivar as famílias, temos esse modelo [de canteiros em pequenas faixas de terra], temos aquele com pneus e temos a proposta de hortas verticais, para quem não tem terreno, com garrafas pet".

Além do platio de hortas, para lembrar "que existem outras possibilidades de adquirir a comida", o padre fala que o projeto da Cozinha Solidária mostra como aproveitar tudo que é possível. "A gente também tem essa preocupação com o aproveitamento dos alimentos".

Junto com isso, na preocupação com o meio ambiente, vem a recusa do uso de qualquer produto descartável: para levar a comida, a pessoa tem que trazer a sua vasilha. De acordo com Pe. Antonio, isso tem duas razões. Uma é economizar, pois daí se reduz custos, e estes recursos são revertidos para a própria alimentação, para comprar comida.

E a outra razão de usar somente objetos não descartáveis é a questão ambiental. "Nós já distribuímos mais de 25 mil refeições nesses quatro meses. Se nós tivéssemos distribuído em material descartável, seriam mais de 25 mil poluidores, marmitas em alumínio ou isopor", informa ele, defendendo: "a gente pode dar nossa contribuição também para amenizar os impactos em toda essa questão climática".

Comunidade deve assumir
Tão ou mais importante que distribuir comida, na visão do Pe. Antonio, é a comunidade abraçar o projeto: "nosso objetivo não é ficar dando comida, mas é a comunidade ver que, se juntando, eles conseguem as coisas mais facilmente, e assim se torna mais fácil superar a dificuldade, a fome, nesse momento".

Segundo ele, a Cozinha Solidária do São Marcos é um projeto piloto, que está servindo de exemplo para outras regiões. "A proposta é que a comunidade assuma essa cozinha, e a gente sai. Então, a ideia é essa, não que a Cozinha se interrompa, mas a comunidade assume, e aí nós partimos para outra região. Aqui no Vale do Sol, poderia a Associação assumir".

Ele conta que já houve uma experiência na Comunidade Mandela, uma área de ocupação que fica depois do aeroporto. "Eles fizeram uma cozinha comunitária. Fizeram, daí saímos, e eles estão tocando por conta. Aí a necessidade é deles, se é só final de semana, se é uma vez por semana, isso quem define é a própria comunidade".

A Cozinha Solidária do São Marcos funciona de segunda à sexta. Mas, orienta Pe. Antonio, "se a comunidade não tiver condições para isso, ela pode determinar só o final de semana, só três vezes na semana, porque aí já ajuda, pelo menos três vezes na semana as pessoas vão comer bem, uma alimento de qualidade".

Para ele, a principal "novidade" do projeto é a preparação da comunidade para assumir a proposta, pois a simples distribuição de comida muita gente sempre fez, mesmo antes da pandemia. "Agora, com esse objetivo que nós temos, aí está a novidade, uma comida de qualidade e lembrando que é pontual, não é nosso objetivo ficar aqui distribuindo comida a vida toda, nós queremos que as pessoas possam produzir sua comida e arrecadar fundos para manter a cozinha".

Apoio da Arquidiocese
A Arquidiocese entra como parceira no projeto da Cozinha Solidária do São Marcos, por meio do Núcleo da Economia de Francisco e Clara. Conforme explica Pe. Antonio, é o Núcleo "que pensa essas alternativas, inspiradas pelo próprio Papa Francisco, que motivou os jovens a pensarem uma nova forma de economia, que tem como alicerce principalmente a solidariedade".

Defendendo que essa é a maneira mais certa de superação da desigualdade e da pobreza, Pe. Antonio detalha algumas das "vertentes" de trabalho do Núcleo de Clara e Francisco. Um dos GTs [Grupos de Trabalho] do Núcleo ajuda o pessoal a pensar a horta comunitária como fonte de renda e como fonte de alimentação da própria cozinha.

"Depois temos outros, como pensar, por exemplo, que as mulheres, ou homens também, podem fazer pão, bolo, para vender, e a renda volta para a cozinha. Aí é uma maneira de a pessoa encontrar um caminho, uma alternativa de fonte de renda para alimentar sua família também. Então, tem essas vertentes que a Economia de Clara e Francisco nos ajuda a ir além da distribuição de comida".

Todos são bem-vindos
A Cozinha Solidária começou a funcionar em junho, como bem se recorda a senhora Neuza Maria da Silva, de 69 anos, que mora na ocupação da Vila Paula há cerca de cinco meses. Antes morava de aluguel, junto com um tio. Mas ele foi embora, e ela ficou na rua por uns três meses até vir morar junto com a família do seu filho mais velho.

"Desde o primeiro dia aqui, levo comida para mim, para os meus dois filhos e para o meu netinho, de quatro anos. Já levo e já deixo pro almoço e pra janta", conta Neuza. Os dois filhos e a nora estão desempregados. Um deles "faz bico, quando tem serviço", completa, lembrando que, talvez, ele vai "trabalhar fixo" no ano que vem, numa firma de construção civil.

"Eu tenho um benefício, mas o meu benefício é o gás que eu compro, compro as coisas para os meus filhos, compro um remédio, tudo do preço que está, tá difícil. No posto, não acha esse remédio, eu fui várias vezes lá e eles 'não, senhora, esse remédio aqui nós não temos, a senhora tem que comprar na farmácia'. Os outros eu pego no posto, mas esse não tem", explica.

Para conseguir algum dinheiro a mais, Neuza diz que cata latinha e também lava roupas: "lavo agachada, porque não tem tanque, não tem nada para lavar roupa. Eu tenho disposição de fazer as coisas, se for para trabalhar numa faxina, eu trabalho, eu tenho disposição". Mas ela não consegue pegar faxinas, por causa do "problema nas vistas".

Sao Marcos 10 23 10Fila começa a se formar às 11h, na sede da Associação de Moradores Vale do Sol

Maria Ângela Lioschi, que mora no CDHU San Martin junto com um filho "do coração", que tem 14 anos, também busca comida na Cozinha Solidária todos os dias. "Sou aposentada por invalidez, porque tive parada cardíaca e lesão cerebral, fiz já três cateterismos, tenho uma válvula", relata com dificuldade.

Ângela diz que paga 210 reais de prestação, 170 de condomínio, mais a luz "que vem vindo cento e pouco por mês". Segundo ela, "a sorte" é que a farmácia do posto dá os medicamentos, mas tem um que precisa comprar, "porque às vezes tem no alto custo, às vezes não tem".

Sobre a extensa fila que se forma ao lado da sede da Associação Vale do Sol, Pe. Antonio diz que qualquer pessoa pode vir pegar refeições. "A senhora que mora sozinha no prédio [CDHU San Martin], ela pode vir pegar?, pode. Às vezes, ela tem comida, mas às vezes ela não tem condições de preparar um alimento de qualidade, e a Cozinha também quer atender esse tipo de pobreza. Quem nos procura é porque precisa, de algum modo".

Campanha
Para ajudar a garantir os ingredientes diariamente usados na produção das refeições feitas pela Cozinha Solidária do São Marcos, a Frente pela Vida em Defesa do SUS Campinas e Região, com apoio da CUT-Subsede Campinas, vem fazendo campanhas de arrecadação financeira e doação de gêneros alimentícios.

Agora, o Grupo de Trabalho de Suporte às Famílias e Comunidades, responsável pelas ações de solidariedade dentro da Frente, abriu uma conta específica para viabilizar tanto as doações pontuais como as mensais, de forma a facilitar o planejamento dos gastos.

Os alimentos podem ser doados na subsede da CUT Campinas, que fica na Rua Culto à Ciência, 56, Botafogo. Antes de ir até o local, deve-se fazer o agendamento pelo tel: 19 99124-3043, com Ivone. Para fazer doações em dinheiro, os dados bancários são:
>> Banco: 133 (Cresol)
>> Agência (Cooperativa): 2022
>> Número da conta: 6.692-3
Chave PIX: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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